02 outubro 2009

O Homem da Terra

Um dos livros que acompanhou durante este Verão foi "O Homem da Terra" do Dr. Luís Cabral Adão. Trata-se de um livro editado em 1986, pelo seu filho António Cabral Adão, que reúne algumas dezenas de textos escritos em épocas diferentes e que foram publicados, na época, em jornais. Este livro transporta-nos a diferentes pontos da país tendo no final alguns textos sobre o Egipto e a Terra Santa. Mesmo não havendo um fio condutor, há textos muito deliciosos, alguns que retratam aspectos de Vila Flor e da região, mas em todos transparece a sensibilidade e a magistral forma de escrever deste vilaflorense. Tudo o que eu possa dizer sobre o livro serão sempre palavras sem jeito, por isso transcrevi algumas páginas para aguçar o apetite a quem o queira ler.
Eu requisitei-o na Biblioteca-Museu Berta Cabral.
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Além, na veiga a Senhora, já chocalham as coleiras dos bois e o dia ainda vem em cascos de rolha. Está a manhã fresca. O ribeiro vai barulhento, engrossado pela chuva que caiu nos últimos dias, e ruge contínua e brandamente, disputando ao pio dos ralos e ao sussurro das árvores a sonorização de fundo deste madrugar sem Lua, onde as sombras se diluem num empastamento a que só as estrelas dum céu límpido dão ligeiríssimo relevo de cores mortas.
O Zé dos Ramos madrugou para meter a charrua aos torresmos encruados no chão cimeiro, a aproveitar o efeito dos pingos de água que vieram amaciar as terras, secas como carvões por uma estiagem desmedida.
- Eh, boi! Toma ali, mãozeiro dum raio!
Os brados do Zé dos Ramos, ao jungir os bois, ecoavam fortes pelo vale além, parece que enchendo tudo, e perdiam-se no horizonte distante, onde os primeiros laivos de claridade avisavam que ia amanhecer.
Piscanhoto, que a visibilidade não era nenhuma, apertava as sogas ao jugo, quase às apalpadelas.

- Ah, mê pai! Olhe o «Mulato», que não está quieto. Raças de rafeiro qu'inda me morde, ora não querem lá ver?!... - tartamudeava o Chico, filho do lavrador, oito anos numas calças rachadas no «sim-senhor» e uns olhos vivos em rosto de
grão de bico.
A junta lá foi posta à charrua com mais ou menos dificuldade. Zé dos Ramos virou a relha, com um pontapé seco, dado com aquele bute pesado e ferrado, no grampo da aiveca, que retiniu como um silvo; e já se viam dois palmos à frente do nariz
quando os bois iniciaram a lavra em passos vagarosos e arrastados.
- Ei, boi!
O Chico e o «Mulato» entendiam-se na brincadeira. O "garoto atirava pedras longe, à «pastor», e o rafeiro trazia-lhas à mão, ufano e a dar ao rabo.
- Busca, «Mulato»! Ah, espertalhão, que não falhas!
Ao lado do ribeiro, os choupos entraram de banhar-se de sol, pois já lhes davam os raios loiros no pino da ramaria. O chão tapetavam-no milhares de folhas amarelas, como penas de canário doente. O Outono entristece a Natureza e enternece a
poesia das coisas. A passarada é mais tristonha no seu piar; os ventos mais lamuriantes; a gente mais resignada na crueza do trabalho.
- Ei, boi!

Já virou, lá ao fundo, a charrua, com novo pontapé no grampo, que fez vibrar novo ruído de ferros. Sulcando fundo, a relha revira a terra debaixo para cima, soterrando o estrume que o Chico agora vai espalhando dos montículos largados das
caniças, no dia atrás, a toda a largura do chão arável.
- Olhe, pai! Não vê esta forquilha? 'Stá a pedir reforma.
Ora olhe! Estes dentes já estão curtos. Já não presta, veja!
- Tu é que não prestas, moço! Ainda é forquilha para muito tempo nas mãos doutro, nanja nas dum zinrilhas como tu.
- É!... - foi a resposta do rapazote puxando a pala do boné para tapar a cara do lado da piada.
Poisou o Sol os raios mornos na veiga da Senhora e beijou aquela terra fresca, negra do húmus, a exalar um ténue vapor no ar frio da manhã. Vieram as boieirinhas a procurar na terra revolvida o seu alimento favorito, seguindo a par e passo a rota
da charrua. Inundou-se de luz viva toda a extensão do vale, branquejando ao longe as casas da Quinta dos Melros, a capelinha da Senhora da Saúde e os pombais do morgado.
A lavra ia em meio, quando o Chico foi à povoação pelo almoço, com o «Mulato» a saltitar-lhe de roda.
Enquanto ele não vinha, o Zé dos Ramos soltou os bois, pô-los debaixo da nogueira com uma faixa de feno desenvencilhada e foi-se sentar à borda da mina, a petiscar fogo para um cigarro «forte».
Era um rapaz moreno, com tez rebatida de sóis e chuvas, arca do peito ampla, braços e pernas como troncos. Entre fumaças, recordou-se de ter sido ali, mesmo à boca da mina, que conhecera há nove anos a Gracinda, meses depois sua patroa, por vias de matrimónio. Ela lavava roupa e ele, que passava no caminho da banda de lá do ribeiro, em direitura à feira dos Palheiros, onde ia vender uma leitoa, sua única fortuna, chegou-se a matar a sede na bica que ali corria, fresquinha e pura que era um consolo. Falaram. Ficou de tal maneira de beiço preso que dali a pouco, tempo suficiente para se lerem os banhos e montar os arranjos, estavam unidos para sempre numa casota ao cimo da aldeia.
De então para cá, quanta emoção, quanta alegria e quanta tristeza? ... A doença dela, quando do primeiro parto. A trovoada de 1934, que lhe levou toda a novidade da courela da Madre. A morte dum boi, que o seguro não lhe pagara por não
estar em dia com o prémio. E como paga dum trabalho duro e constante, Deus só o premiava com filhos e mais filhos, que já tinha em casa um regimento deles: nada mais nada menos do que cinco! A mais novita fazia para o Entrudo dois anos.

(...)
Este é o homem da terra! Este é o homem que luta constantemente pelo pão de cada dia, tremendo ao frio, bufando ao calor, molhando-se à chuva, despeitorando-se ao vento. Este é o homem que tem na alma os reflexos puros das paisagens e dos gorjeios, que sente a vida na sua mais pura essência, porque a traz na mão a cada hora, porque a defende, porque a exalta na pujança duma seara ou na suculência dum fruto.
A sua alma é rude como rochedos revestidos de heras, firme como o calor do sol e boa como a germinação das sementes.
Este é o homem da terra, que se esgota no amanho da lavoura, durante meses, para se pagar de toda a tortura da batalha, com um sorriso de satisfação, perante os sacos cheios, na eira, ou as vasilhas atestadas, no lagar!
Este é o homem que ganha o seu pão para nos dar o nosso.
Eu te saúdo, pioneiro da vida! que, em prémio do teu esforço vital para a humanidade, recebes por graça de Deus uma ninhada de filhos, tão vivos e contentes como essas alvéloas gaiatas que te acompanham sempre, quando lavras a terra para as sementeiras de cada ano!
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Fotografias: 1 - Engarelas, em Folgares
2 - Casa no Gavião (Seixo de Manhoses)
3 - Alfaias agrícolas em Lodões
4 - Casas em Benlhevai

2 comentários:

Anónimo disse...

Um texto bonito! Obrigada por partilhar.

Anónimo disse...

BOM DIA SENHOR ANIBAL.GOSTAVA MUITO DE OBTER ESTE LIVRO.COMO POSSO FAZER.LEMBRA-ME MUITO A MINHA
INFANCIA. NOS ANOS 60 FOI UM DOS MEUS PASSA TEMPO A LAVRAR COM DOIS
BURROS O RUSSO E O PRETO COMMO EU OS BATIZEI.ERA ESTA A MINHA PRINCIPAL VIDA ANTES DE IMIGRAR PARA TERRAS DE FRANCA.
SE ME PRMITE APROVEITO PARA MANDAR UM ABRACO A D.ANITA.
MAIS UMA VEZ MUITO OBRIGADO.
GUILHERME.SOUSA....FRANCA